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Artigo: Alienação de reforço: dinâmica velada de desfiliação parental

O texto propõe o conceito jurídico de “alienação de reforço”, uma dinâmica silenciosa em que ambos os genitores contribuem para a rejeição da criança a um deles, com graves impactos emocionais

1. Introdução e objetivo da proposta

Antes de propor a formulação de uma nova categoria descritiva para a dinâmica aqui observada, é necessário esclarecer que não se pretende, com este trabalho, oferecer qualquer descoberta inédita no campo da psicologia, tampouco lançar epifanias sobre fenômenos já estudados pelas ciências da saúde mental. O objetivo desta abordagem é contribuir com a comunidade jurídica, especialmente com os operadores do Direito de Família, para compreender e reconhecer, em linguagem acessível e aplicada ao foro, um padrão recorrente e muitas vezes negligenciado nas disputas de guarda e convivência. Trata-se de uma tentativa de dar visibilidade, sob o prisma jurídico, àquilo que já é conhecido por profissionais da psicologia: as formas silenciosas e complexas pelas quais se constrói a rejeição da criança a um de seus genitores.

Na prática forense, é comum que essa dinâmica passe despercebida por equipes técnicas, justamente por não se manifestar por meio de condutas explícitas, difamatórias ou ostensivamente alienantes. Contudo, o advogado que acompanha de perto a vivência concreta de seu cliente, em sucessivos relatos e reações emocionais, tende a estar em posição privilegiada para perceber sutilezas e padrões comportamentais que escapam à objetividade do laudo ou da escuta pontual. Por isso, é fundamental que a advocacia desenvolva instrumentos próprios para identificar esses fenômenos e colaborar com o juízo na adoção de medidas protetivas adequadas à realidade do caso concreto. É nesse sentido que se insere a proposta de caracterizar a “alienação de reforço”.

2. A dinâmica da alienação de reforço

Trata-se de uma dinâmica que pode ser ilustrada pelo seguinte exemplo: durante o período de convivência com a mãe, a criança é tratada com rispidez, ou mesmo frieza afetiva. Ao retornar à casa do pai, manifesta tristeza ou retraimento. Este, por sua vez, ao perceber o abatimento do filho, questiona-o sobre o que houve. Ao ouvir o relato da atitude rude da mãe, responde com indignação: “Que absurdo!”, “Ela não podia fazer isso com você”, “Ela realmente não tem coração”. Ainda que não pratique difamação direta ou estimule o rompimento de laços, essa validação contínua das falhas do outro genitor, mesmo que verídicas, provoca na criança uma intensificação do sofrimento, corroendo sua imagem interna daquele com quem conviveu. Nesse cenário, o genitor reforçador não planta a rejeição: ele a rega. E o faz com o pretexto de acolhimento, de afeto, de empatia, tornando ainda mais difícil identificar a origem da resistência da criança ao convívio futuro com o outro genitor.

Esse tipo de resposta parental, embora à primeira vista possa parecer apenas empática ou protetiva, valida de forma desproporcional o sofrimento da criança, alimentando uma percepção negativa cristalizada do outro genitor. Com isso, a experiência emocional da criança é reforçada e amplificada, sem qualquer mediação ou elaboração, prejudicando seu vínculo com o outro cuidador e intensificando sentimentos de rejeição, medo ou raiva.

Nessa dinâmica, nenhum dos genitores isoladamente age de forma plenamente alienadora, mas ambos contribuem, por vias distintas, para a erosão do vínculo da criança com um dos pais: um pela conduta relacional disfuncional (rudeza, rigidez, frieza), e o outro pela forma como acolhe e reverbera a queixa da criança, reforçando negativamente a percepção que ela já tem do primeiro. Trata-se de um ciclo silencioso, mas altamente prejudicial à formação emocional e identitária da criança.

3. Efeitos emocionais na criança

Essa interação cumulativa forma um circuito de validação negativa: o genitor rude desregula emocionalmente a criança; o outro, ao invés de ajudá-la a elaborar internamente essa vivência, confirma e amplifica o sentimento de injustiça ou abandono. A ausência de qualquer contraponto afetivo ou interpretativo impede que a criança desenvolva uma compreensão mais integrada e realista das falhas humanas, o que compromete seu amadurecimento emocional e sua capacidade de manter vínculos complexos.

Além disso, quanto mais incisivo no julgamento crítico acerca da conduta do outro genitor, maior a chance da criança acabar se tornando emocionalmente refém de uma lealdade unilateral, sendo levada a se alinhar com o genitor “reforçador” como se estivesse em constante vigilância para não trair a expectativa de repúdio ao outro. Isso gera ansiedade, culpa, confusão afetiva e até sintomas internalizantes, como retraimento, baixa autoestima e dificuldades de socialização.

Em situações mais prolongadas, podem surgir transtornos de conduta, dificuldades escolares e uma visão distorcida dos vínculos afetivos, marcada pela desconfiança e pelo medo do abandono.

A alienação de reforço exige um olhar técnico e atento. Trata-se de um modelo silencioso de corrosão da convivência parental, que não opera pela via da agressão direta, mas pelo acúmulo de microvalidações que colocam a criança em rota de colisão com a complexidade das relações familiares. Sua identificação precoce e a intervenção interdisciplinar adequada são fundamentais para evitar a deterioração dos vínculos afetivos e a formação de padrões relacionais disfuncionais na vida adulta.

4. A imposição do convívio forçado e seus efeitos nas dinâmicas de alienação de reforço

Nos casos de alienação de reforço, a resposta judicial tradicional, consistente na imposição compulsória de visitas ou convívio com o genitor rejeitado, tende a produzir um efeito inverso ao desejado. Em vez de promover o reestabelecimento saudável dos vínculos, a convivência forçada, sem a devida análise da complexidade da dinâmica familiar subjacente, agrava a angústia da criança e reforça seu sofrimento.

Isso ocorre porque, na alienação de reforço, a criança não apenas vivencia experiências negativas durante a convivência com o genitor rude, como também tem essas vivências constantemente validadas, confirmadas e ampliadas pelo outro genitor. Ainda que este não faça declarações abertamente difamatórias, atua silenciosamente como reforçador emocional das experiências negativas, expressando indignação, reforçando a inadequação do outro e cristalizando na criança a sensação de que está sendo submetida a uma forma de tortura psicológica, imposta não só pelo genitor “agressor”, mas sobretudo legitimada pelo Estado, por meio da decisão judicial.

A criança passa a sentir que é obrigada a reviver episódios dolorosos sob a chancela do juiz, o que mina sua confiança nas instituições de proteção e fortalece a rejeição ao convívio. Ao retornar da visita forçada, não raro é acolhida pelo genitor reforçador com frases como “viu como eu estava certo?”, “você não merece passar por isso”, ou mesmo apenas com silêncios carregados de reprovação. Esse comportamento, ainda que passivo, reforça a crença de que o convívio imposto é nocivo e que o sistema de justiça não compreende ou ignora seu sofrimento.

Em médio e longo prazo, se essa dinâmica não for corretamente identificada e interrompida, tende a se agravar, culminando em rejeições mais intensas, mais duradouras e mais difíceis de reverter. A insistência cega em forçar o convívio, desprovida de medidas estruturantes e corretivas voltadas aos pais, revela-se não apenas ineficaz, mas altamente prejudicial à integridade emocional da criança.

A melhor resposta judicial, nesses casos, deveria ser estruturada em dupla advertência e responsabilização: de um lado, medidas incisivas e claras voltadas ao genitor que adota comportamento rude ou emocionalmente disfuncional com a criança, exigindo mudança de postura sob pena de sanções mais severas, inclusive a interrupção do contato ou sua forma supervisionada. De outro, é fundamental que o genitor reforçador seja formalmente advertido, de modo explícito e inequívoco, de que o juízo está atento à sua atuação silenciosa que, embora sutil, contribui significativamente para o rompimento afetivo da criança com o outro genitor.

Somente a atuação judicial integrada, vigilante e balizada pela compreensão profunda das dinâmicas relacionais, poderá restaurar o equilíbrio necessário à reconstrução dos vínculos parentais.

Em contextos de alienação de reforço, limitar-se à imposição do convívio equivale a tratar o sintoma e ignorar a causa: uma medida que, longe de resolver, compromete gravemente a saúde emocional da criança e perpetua o ciclo de hostilidade familiar.

5. Estratégias processuais para o enfrentamento da alienação de reforço

O enfrentamento da alienação de reforço no âmbito judicial exige uma abordagem que ultrapasse o modelo simplista de alienador versus alienado. Nessa modalidade específica de disfunção familiar, a alienação não se expressa por meio de acusações explícitas ou difamação direta, mas sim por condutas silenciosas que reforçam a percepção negativa da criança sobre o outro genitor, amplificando experiências já traumáticas ou desconfortáveis. Trata-se de uma dinâmica sutil, cíclica e muitas vezes normalizada no cotidiano familiar, mas com efeitos profundos e potencialmente danosos à saúde emocional da criança. Por isso, a resposta judicial deve ser tecnicamente cuidadosa, interdisciplinar e assertiva, contemplando ambos os genitores com foco prioritário na proteção da criança.

5.1. Produção probatória precoce e especializada

Desde os primeiros atos do processo, é fundamental que o juízo determine a realização de estudo psicossocial e, conforme o caso, também perícia psiquiátrica do genitor que apresenta comportamento hostil. A avaliação psiquiátrica é indicada não como medida punitiva, mas como instrumento de proteção à criança e de esclarecimento sobre possíveis causas subjacentes à hostilidade, como transtornos de humor, traços de personalidade disfuncionais ou outros fatores que exigiriam acompanhamento específico. Além disso, o próprio encaminhamento já possui caráter pedagógico, transmitindo ao genitor a mensagem de que seu comportamento ultrapassou os limites toleráveis da parentalidade responsável e exige mudança, independentemente das condutas do outro genitor.

O ordenamento jurídico brasileiro autoriza o juiz, diante de indícios de risco à integridade psíquica da criança ou do adolescente, a determinar medidas interventivas voltadas à proteção da sua dignidade e ao fortalecimento dos vínculos familiares. Nesse contexto, o art. 129, inciso III, do ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente prevê expressamente a possibilidade de incluir os pais ou responsáveis em programa oficial ou comunitário de proteção à família, o que compreende, conforme o caso, o encaminhamento para avaliação psicológica ou psiquiátrica,

especialmente quando a convivência familiar mostra-se marcada por comportamentos disfuncionais, agressivos ou emocionalmente lesivos.
Essa atuação judicial encontra fundamento também no art. 17 do ECA, que assegura à criança e ao adolescente o direito à preservação da integridade física, psíquica e moral, o que inclui proteção contra qualquer forma de exposição ou sofrimento decorrente da conduta parental.
Adicionalmente, o art. 18-B, inciso II, do ECA reforça a possibilidade de atuação do Estado na prevenção e combate a qualquer forma de violência psicológica no âmbito das relações familiares, autorizando o encaminhamento compulsório dos genitores a serviços e tratamentos especializados, inclusive de natureza psiquiátrica, quando necessário.

5.2. Audiência de advertência fundamentada

A convocação de audiência com ambos os genitores, com acompanhamento técnico de equipe interdisciplinar, é etapa essencial para realizar advertência judicial com fundamentação psicológica e normativa, deixando claro que o juízo está atento tanto ao comportamento hostil quanto ao reforço silencioso. É importante frisar ao genitor hostil que ele tem responsabilidade exclusiva sobre sua postura e que não pode justificar sua agressividade em função do comportamento do outro, sob pena de revitimizar a criança e transferir a culpa do conflito.
O art. 6º, inciso I da lei 12.318/10 dispõe que ao declarar a alienação, o juiz deverá advertir o alienador. Essa “advertência” é exatamente o ato central da audiência ora proposta: um aviso formal e severo do juízo ao genitor que está praticando o comportamento hostil, independente dele ser ou não o rejeitado, já que a nossa legislação não faz qualquer distinção nesse sentido.

Ademais, o juiz tem o poder-dever de dirigir o processo e tomar todas as medidas necessárias para garantir a efetividade da justiça e o cumprimento das decisões (Art. 139 do CPC). Isso inclui a convocação de audiências específicas para resolver pontos cruciais do conflito familiar. A audiência de advertência é um instrumento para proteger a integridade psicológica da criança, coibindo uma forma de violência psicológica, em linha com os arts. 17 e 18 do ECA.

5.3. Acompanhamento terapêutico individual e/ou familiar (art. 6º, inciso IV da lei 12.318/10; art. 129, incisos III e IV do ECA; art. 694 do CPC)

Em complemento, recomenda-se o encaminhamento de ambos os genitores a acompanhamento psicológico voltado à reestruturação de suas funções parentais, com possibilidade de terapia vinculada à parentalidade ou mediação familiar, desde que haja viabilidade emocional. O genitor que reforça silenciosamente o sofrimento da criança também deve ser incluído nesse processo, a fim de tomar consciência do papel que exerce na manutenção da angústia do filho.

5.4. Escalonamento de medidas coercitivas não-punitivas

Persistindo a conduta disfuncional, o juízo poderá aplicar medidas coercitivas previstas no art. 6º da lei 12.318/10, como advertência formal (inciso I), imposição de multa (inciso II) e até alteração do regime de convivência (inciso III). Essas medidas devem ser proporcionais ao grau de prejuízo psicológico à criança, e devem ser acompanhadas de avaliação técnica periódica. Não se recomenda, nesse contexto, cogitar a inversão da guarda em favor do genitor rude, ainda que o outro apresente condutas reforçadoras, já que o objetivo não é punir, mas proteger e restaurar os vínculos de forma saudável.

5.5. Planejamento progressivo da convivência e reestruturação gradual dos vínculos (arts. 4º e 6º, incisos II e IV da lei 12.318/10; art. 227 da CRFB/88; art. 4º e 19 do ECA; art. 139 do CPC)

É recomendável evitar decisões judiciais abruptas que imponham convivência extensa de forma repentina. Ao contrário, deve-se estabelecer planos de convivência progressivos, avaliados regularmente com base em relatórios técnicos, permitindo que o vínculo com o genitor rude seja reconstruído com segurança e sob monitoramento. A atuação judicial deve ser sensível à temporalidade emocional da criança, e não apenas à urgência das demandas processuais.

Observe-se que a sensibilidade ao tempo da criança decorre diretamente do seu melhor interesse. O direito de convivência do genitor não pode se sobrepor ao direito da criança a um desenvolvimento saudável e à sua proteção integral.

Demais disso, o art. 1.589 do CC estabelece que o direito de convivência será “fixado pelo juiz”. Isso confere ao magistrado o poder discricionário para moldar o regime de convivência da forma que melhor atender às particularidades do caso concreto, não estando adstrito a modelos fixos, podendo estabelecer um regime progressivo.

Essa abordagem reafirma que a Justiça de Família não pode se limitar à aplicação mecânica de modelos pré-definidos, devendo atuar de forma ativa e inteligente na leitura dos contextos relacionais. A alienação de reforço exige atenção redobrada, pois opera no campo do afeto silencioso, da validação indireta e da omissão estratégica, o que impõe ao Judiciário o desafio de fazer ver o invisível, e proteger o vínculo antes que ele se quebre de forma irreparável.

6. Conclusão

A alienação de reforço, tal como delineada nessa proposta, não constitui uma novidade científica, tampouco pretende substituir os modelos já consolidados pelas ciências da saúde mental. Seu valor reside na proposta de criar uma linguagem jurídica própria para descrever uma dinâmica recorrente e subestimada nos litígios de guarda e convivência: a corrosão silenciosa do vínculo parental pela combinação de comportamentos disfuncionais distintos, mas complementares, entre os genitores. Um age com rudeza, desregulando afetivamente a criança; o outro, embora afetuoso, reforça negativamente essa dor, impedindo a elaboração psíquica e cristalizando a rejeição.

Neste cenário, a intervenção judicial tradicional, centrada na dicotomia alienador versus alienado, e na imposição compulsória de visitas, mostra-se insuficiente, quando não contraproducente. A alienação de reforço exige uma resposta complexa, estruturada em medidas pedagógicas, protetivas e, acima de tudo, individualizadas. A atuação do Judiciário, em colaboração com advogados e equipes técnicas, deve buscar não apenas restaurar o convívio formal, mas reconstruir o campo emocional seguro necessário para que o afeto genuíno possa florescer.

Reconhecer e nomear essa dinâmica é o primeiro passo para enfrentá-la com as ferramentas adequadas. Ao propor a categoria jurídica da alienação de reforço, busca-se sensibilizar os operadores do Direito para os nuances do conflito familiar e para os riscos da omissão institucional diante do sofrimento infantil mascarado de lealdade e afeto seletivo. Mais do que impor convívios ou aplicar sanções, o papel da Justiça deve ser o de restabelecer o equilíbrio relacional, protegendo a infância de um trauma que, quando não reconhecido, tende a deixar marcas profundas e duradouras.

Fonte: https://www.migalhas.com.br/depeso/433108/alienacao-de-reforco-dinamica-velada-de-desfiliacao-parental
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